terça-feira, 23 de junho de 2009

Contos Avulsos - Crime e castigo.

Crime e Castigo


O Homem estava parado no ponto de ônibus esperando, como fazia todos os dias ha cinco anos, o circular que demorava mais para chegar até o afastado bairro do que o trajeto inteiro que o veiculo iria percorrer. Eram cinco da manhã, o céu ainda estava azul escuro e fazia um frio constante, a garoa rasgava a pele ajudada pelo vento comum em São Paulo. Estava sozinho e pensando nas contas de luz e água que já estavam vencidas há algum tempo e provavelmente iriam ser cortadas naquela mesma semana. O que restou do pífio salário do mês estava no bolso da jaqueta jeans batida e seria suficiente para o pagamento de apenas um dos dois boletos em atraso que repousavam pesadamente no bolso interno, aquele que fica perto do coração. Esperava conseguir um adiantamento na área de recursos humanos da empresa. Não havia viva alma a sua esquerda nem a sua direita, nesta ficava a padaria do Oswaldo “Português” que ainda estava fechada, mas dava para sentir o gostoso aroma da primeira fornada. O estomago lembrou ao homem que o café preto e amargo que foi seu único desejum naquela madrugada fria não foi suficiente para saciar nem uma pequena parte de sua fome, uma mistura de vergonha e impotência arranhava o orgulho do ferramenteiro.


Uma coisa que ajudava a amenizar as dificuldades da vida era sua fé no Senhor Deus e sua honra que muitas vezes o alimentava de esperança na máxima que dizia: “Um pobre honrado na terra era rei dos reis no paraíso.”. Claro que nem sempre isso bastava e por inúmeras vezes o homem ficou tentado a seguir o caminho mais fácil e perigoso, mas a imagem da mulher e dos filhos vinha lavar sua mente. Continuava esperando. Do ponto de ônibus em que estava viu o Mineiro, ajudante de padeiro na biboca do Português aparecer na esquina, montado em sua bicicleta barra forte enferrujada, seguindo calmamente para o seu local de trabalho, o homem pensou que aquele pobre coitado que pedalava impávido conseguia ter uma vida mais sofrida ainda que a sua. A esposa do ajudante de padeiro adoecera e faleceu na fila do hospital padecendo de alguma doença grave que foi classificada como sendo uma virose qualquer por algum medico recém formado que prestava plantão no posto do bairro, a esposa deixou dois filhos para o pobre mineiro cuidar, um de dezesseis anos e outro de quatro anos. A família toda agora morava nos fundos da casa da ex-sogra, uma megera viúva e ressentida da vida, que fazia questão de tornar a vida do coitado ainda mais miserável sempre que podia por ceder um cômodo mal acabado e com infiltrações nas paredes que sempre atacavam os pulmões do seu filho mais novo para que o pai pudesse morar com os netos, pobre Mineiro.


Naquele momento, na esquina oposta aparece um automóvel Golf vermelho em alta velocidade, o carro fez a curva tão rápida e em um ângulo aberto que a roda do lado do passageiro quase acertou a guia, pois passou a poucos centímetros da calçada, do ponto de ônibus o homem pode ouvir o som alto que reverberava de dentro do veiculo, aqueles filhinhos de papai usavam o bairro como atalho para chegar a uma das marginais de São Paulo sempre que saiam de uma chácara que promovia festas regadas a álcool, drogas e musica eletrônica. Demorou alguns instantes para juntar os fatos e perceber a perigosa situação que se montava diante de seus olhos. O carro vermelho serpenteava na rua quase sem controle e quando a roda acertou um dos muitos buracos existentes naquele asfalto antigo e sem cuidados e como escrito no pensamento do homem o automóvel vermelho se desgovernou com um barulho seco de borracha derrapando e partindo em uma linha reta para a velha bicicleta do Mineiro que naquele momento descobriu o que iria acontecer. O Barulho não foi parecido com nada que o homem já tinha ouvido antes em sua vida, primeiro veio o som de metal com metal quando o carro atingiu a antiga bicicleta do ajudante de padeiro e logo em seguida um baque surdo sonorizando o encontro frontal do peito do mineiro com o capo do carro desgovernado. Após atravessar o destino do atropelado o carro chocou-se com um poste poucos metros à frente, destruindo totalmente a frente do carro, que praticamente abraçou o poste, formando um “U” com a parte dianteira do veiculo. O homem que estava estático no ponto de ônibus, agora já estava correndo para acudir o vizinho do bairro, mas sabia pela posição que o corpo padeiro tinha caído no asfalto que a possibilidade de encontrá-lo com vida era pequena e que a vida já tinha se esvaído daquele corpo inerte.


Do carro recém destruído que soltava fumaça por baixo capo e vazava um misto de água que vinha do radiador esmigalhado e gasolina que caia de rachaduras feitas no bloco do motor, desce uma figura que se não estivesse bêbado como um alemão dentro da Oktober Fest até se pareceria com um rapaz no auge dos seus 20, bem aparentado, com roupas bem cuidadas e cabelo tipicamente cortado no estilo classe media. Mal pos as pernas para fora do carro e já tinha perdido o equilíbrio tendo que se escorar no carro para manter-se em pé com alguma segurança. O homem estava agachado sobre os calcanhares a alguns centímetros do corpo do falecido Mineiro que tinha o pescoço quase totalmente virado para trás e vertia sangue da boca, nariz e orelhas. Os olhos úmidos do homem encontraram as pupilas já dilatadas do corpo sem vida do pobre vizinho, ele nunca tinha visto nenhum cadáver nestas condições antes deste momento, muito menos o corpo de um amigo. Aquele olhar que não dizia nada, vago e sem brilho ficaria guardado sempre em seus sonhos, ele sabia. Até aquele momento o homem não tinha dado a menor atenção ao rapaz cambaleante que descia do carro, mas algumas palavras desconexas chamaram sua atenção e o fez virar a cabeça na direção do motorista que estava esbravejando palavrões para o poste que logicamente tinha destruído seu possante automóvel. Da testa do motorista alcoolizado escorria um filete de sangue que descia pela lateral da cabeça e ia cair na camisa pólo com listras brancas e cinzas que ia ganhando uma cor avermelhada na altura do ombro direito. Demorou alguns segundos para que o jovem motorista do Golf percebesse o homem agachado perto de um corpo a alguns metros do seu carro, ele, em seu raciocínio alterado sabia que aquele corpo estirado na rua era culpado pelo carro destruído que o pai lhe dera ainda naquele ano. O jovem andou cambaleando até bem próximo do padeiro e derramou uma avalanche de insultos sobre o cadáver estirado no asfalto, daquela distancia o homem podia sentir o cheiro de álcool que escapava da boca do rapaz que tinha os olhos vermelhos. Ainda agachado ao lado do Mineiro, ele olhava aquele rapaz bêbado com uma cara de susto e mantinha os olhos arregalados que encaravam aquele jovem recém saído da puberdade que tinha a covardia ou coragem etílica de falar mal da pessoa que ele mesmo matou! O rapaz ainda sem muito equilíbrio apontava e gritava com o morto dizendo que ele acabou com o carro novo que o pai tinha presenteado-o e que ligaria para o advogado da família e iria fazer pagar cada centavo na reparação do carro ou o pai ia fazer ele mofar na cadeia.


Algumas vezes a calma de uma pessoa some e cede o lugar para a fúria tomar conta da alma dos homens, só que neste caso a fúria era algo pequeno para o que inflamava dentro do peito do homem, ele sentia um calor dentro de suas entranhas fazendo suas mãos tremerem e podia fantasticamente ouvir o batimento do próprio coração pulsando bravo dentro de seu peito simplório que nunca tinha faltado com sua honra e com o respeito aos seus. Suas mãos suavam e uma pequena palpitação aparecia no olho esquerdo. O rapaz embriagado estava parado sobre o corpo sem vida do mineiro e conversava com este como se lá do mundo do além o espírito do ajudante de padeiro pudesse ouvi-lo. Algumas pessoas começavam a aparecer nos portões e janelas das casas simples daquela rua atraídas pelo barulho da cena ocorrida há poucos minutos. Os moradores daquela rua começavam a tomar ciência da cena de terror que se abatia na pacata rua. A cena compunha-se por três personagens, o primeiro era o corpo do pobre ajudante da padaria, o segundo era o rapaz embriagado que esbravejava contra um defunto e o terceiro era o homem comum que assistira a tudo de camarote e se via agora dentro de uma situação única e que se pudesse escolher jamais participaria da mesma. Os minutos que se passaram a partir deste ponto não foram narrados pelos moradores para os policiais que chegaram somente algumas horas atrasados. Todos os que foram questionados diziam a mesma coisa em versões diferentes, aqui será postada a versão que todos os sabem, mas ninguém mais comenta, seja numa mesa de bar ou na cama antes de dormir.


O jovem motorista estava em frente ao corpo do mineiro e gritava palavras embaçadas pelo álcool e gesticulava nervosamente, como se por raiva do silencio do cadáver o rapaz deu um chute no corpo do falecido ajudante de padeiro e este gesto foi o gatilho da sua ruína. O homem que estava agachado ao lado do seu finado vizinho foi tomado por um choque que correu sua espinha dorsal e explodiu em seu cérebro que mandou mensagem para varias partes do corpo que por sua vez responderam rapidamente. Com um movimento rápido demais para o motorista embriagado acompanhar, o homem postou-se sobre os pés e atirou-se para cima do jovem acertando-lhe com o punho a boca do estomago, o que fez o rapaz dobrar-se e tossir secamente, mas antes que pudesse levantar o joelho do homem atingiu seu queixo jogando sua cabeça para traz e por milagre ou apenas pela física o motorista ficou em pé para receber então um soco vindo da direita para esquerda que pousou sobre a lateral do nariz, esmigalhando cartilagem e osso e seguido por outro soco vindo de baixo para cima e acertando o queixo já dolorido com tamanha força que o impulso derrubou-lhe com as costas no chão e jogando suas pernas para o ar.


A visão do homem estava turva e a adrenalina fazia seu corpo tremer involuntariamente, era como se uma voz o mandasseele punir aquele rapaz por seus crimes. Apoiado com os joelhos no chão o homem acertou vários socos no rosto do motorista ate que a feição não lembrasse nada mais do que uma massa desfigurada de carne, sangue e dentes. Segurado pela camisa, o jovem tinha os braços tombados ao lado do corpo e vertia sangue por inúmeros cortes na face, estava semi-inconsciente e largava palavras sem nexo e sentido enquanto o home estava em pé com a cabeça baixa olhando fixamente para o chão num ponto perdido entre tantos pensamentos. Quando os policiais chegaram encontraram um corpo sem vida ao lado do carro claramente identificado como a tal vitima de atropelamento reportado pelo telefonema recebido na delegacia e também encontraram outra vitima que se agarrava ao fino fio de vida que ainda se prendia teimosamente ao corpo e que aparentemente tinha sido vitima de atropelamento por um caminhão ou algo muito grande.


Quando indagados sobre o ocorrido no local ninguém tinha visto nada ou ouvido nada alem da batida do carro contra a bicicleta. Essa era uma lei que ninguém contestava. Quando o rapaz teve condições para falar e ser preso pela policia era tarde. O homem continuava morando no mesmo lugar e tinha o mesmo trabalho de sempre, continuava fazendo mágica com o pouco dinheiro vindo do salário a única coisa que mudou foi seu olhar. Quando alguém olhava na cara do homem via que aquela pessoa tinha coragem, uma coragem assustadora, e até o fim de seus dias, muitos anos na frente, ele mantinha esse olhar.

6 comentários:

Anônimo disse...

Hoje li "Mais um dia de trabalho".

Venho dizer que me agradou particularmente a sua descrição dos lobisomens, que são criaturas fascinantes.


É isso aí! É bom encontrar um dos poucos raros que se distanciam do Comum!

Trevas e Fúria a ti, jovem escritor-caçador!

Ass: Kaliban.

The Puck disse...

Po, valeu cara! logo postarei outros contos sobre o clube de caça. Continue lende e recomende. Gosto muito de saber a opnião dos leitores.

Obscuros!

Lucas Lucas disse...

Mas que surra o playboyzinho levou!
Parabens, otimo conto...

Lucas

The Puck disse...

Lucas,

Deve ter doido, não?

Grande Abs!

Anônimo disse...

Ô, tem bastante calmaria no início, sangue no mei e coragem no fim de seus contos, não?

The Puck disse...

Assim como tudo na nossa vida, não?

 
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